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Para ler ouvindo: Pj Harvey - Down By the Water
Ela descia a rua todo fim de semana, sempre com pressa, sempre atrasada pra alguma coisa que nem sabia direito o que era.
Passava rápido pela sinuca, lugar cheio de rostos conhecidos, que comandavam o espaço com olhares afiados e risadas baixas, o bar fedido exalava cheiro de cerveja velha misturado com suor e cigarro.
A Augusta era o antro da diversidade, um caldeirão onde tudo se misturava e ninguém se assustava. Cruzava com putas de salto alto e olhares alertas, artistas rabiscando a própria existência nas paredes e nas veias, atores celebrando suas falas num palco invisível, cantores loucos, bandas de punk quebrando o silêncio, cafetões que pareciam donos do mundo e traficantes que negociavam sombras no escuro.
Policiais fingiam não ver, cegos das transgressões que aconteciam ali, enquanto os adolescentes com fogo nos olhos, desafiando o mundo com atitude e cuspindo ideais utópicos; gays, lésbicas, heteros e vovós de cabelos roxos, que guardavam histórias que ninguém mais tinha coragem de contar; trabalhadores de gravatas e paletós andando com pressa, todos indo sei lá pra onde, todos buscando algum lugar onde pudessem ser só eles, ou talvez ninguém.
A porta vermelha estava ali, sempre a mesma, cheia de rabiscos, que gritavam resistência, era um buraco na parede da cidade, um convite silencioso pra quem soubesse o código para entrar em outro mundo.
Dava o nome pro vulto que ficava ali, um sujeito grande com cara de quem viu tudo e não se importa, que não precisava de conversa pra deixar entrar quem merecia. Passava pelo corredor grafitado, o cheiro de tinta seca, mofo e suor grudado na pele, uma mistura que se tornava parte do corpo depois de um tempo.
A sala principal era um espaço onde ninguém precisava falar alto, os livros ditavam as filosofias insanas daqueles que se propunham a pensar, a música era um zumbido constante, um ruído de fundo que martelava na cabeça. A luz era baixa, os móveis meio caídos, as prateleiras cheias de tudo e uma ideia de lar pra quem não tinha outro.
Ela procurava alguém conhecido, e não achava. Mas isso pouco importava.
Pedia para o dono do bar uma dose, que descia rasgando a garganta, o gosto forte que grudava na boca e queimava o peito.
Depois, saía para o quintal nos fundos, para afundar seus anseios e soltar em fumaça, conversando com alguém que podia ser qualquer um, um estranho, um irmão de fuga, alguém que não perguntava nada e nem esperava respostas. Não importava.
O tempo ali perdia a forma, os minutos se esticavam ou encolhiam conforme a fumaça subia e desaparecia. Voltar pra dentro de si, sentar em frente as prateleiras, pegar um livro de algum autor maldito, ler umas poucas palavras só pra ter alguma coisa na mente e um pouco de peso no peito.
A madrugada escapava pelas frestas, e as pernas continuavam se movendo sem pensar, como se tivessem vontade própria.
A rua chamava com voz áspera, aquela voz que você reconhece de longe e não pode ignorar. Sempre havia algo pra fazer, algum caminho pra seguir, um jeito de não se perder completamente, de continuar ali mesmo quando tudo dentro pedia pra ir embora.
Ela não sabia direito quem era, nem pra onde iria depois, mas sabia que naquele lugar, naquela rua suja e cheia de fumaça, pelo menos podia fingir que era alguma coisa.
Que existia. Que valia a pena.
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