Ela caminhava sozinha. O sobretudo preto, pesado nos ombros, parecia tanto proteção quanto prisão. As botas de couro batiam no asfalto úmido com firmeza, mas havia pressa no compasso — uma urgência que denunciava mais fuga do que destino. Entre os dedos, um cigarro aceso deixava rastros incandescentes no ar; na outra mão, um livro fechado, carregado como se fosse a única âncora que ainda a ligava a si mesma.
Os passos largos, quase uma corrida. Olhava para trás com frequência, os olhos varrendo a escuridão como quem busca uma sombra, um vulto, um sinal de que a perseguição não era apenas fruto da mente. Mas não havia nada. Ou talvez houvesse: os monstros que ninguém vê, os medos que se enraízam no peito, os desejos que sussurram verdades cruéis quando o silêncio se instala.
Ela queria voltar. Para casa. Para algum lugar que pudesse chamar de lar. Mas a memória lhe era um labirinto: não lembrava o endereço, o número da porta, nem mesmo o rosto que deveria reconhecê-la no espelho. Estava perdida, e ainda assim seguia adiante, como se os pés soubessem o que a mente recusava a dizer.
E então, no meio da noite fria, um lampejo. Uma lembrança. O rosto que a esperava tantas vezes, paciente, nas noites solitárias. A pele clara, delicada como porcelana aquecida pelo toque; o corpo que conhecia seus segredos de memória; o cheiro da comida recém-preparada; a suavidade das roupas lavadas que prometiam acolhimento. Enquanto o vento chicoteava o sobretudo, ela se lembrou do vazio brutal de estar só.
E continuou.
A memória trouxe outras cores. As flores espalhadas pela casa nas manhãs de primavera, as risadas fáceis, as conversas banais que, no fim, eram tudo o que realmente importava. Um refúgio de simplicidade e calor.
E, guiada por essas lembranças, encontrou o caminho.
O coração acelerava quando alcançou a porta. Entrou apressada, quase tropeçando nas próprias pernas, e subiu as escadas na ânsia de reencontrar o abraço que imaginara tantas vezes.
Mas o que encontrou foi cor demais.
Um vermelho espalhado por todos os lados, cobrindo chão, paredes, móveis — um vermelho que não pertencia à primavera nem às flores. O corpo que antes era abrigo estava ali, mas já não era o mesmo: a pele macia estava rasgada, o contorno delicado agora uma sombra de dor. O silêncio da casa pesava mais do que qualquer escuridão da rua.
O sorriso, aquele que a esperava toda noite, havia desaparecido. No lugar, apenas lágrimas secas marcadas no rosto imóvel.
Sobre a mesa, um bilhete curto, frio, definitivo:
“Te esperei por tempo demais.”
“Fonte dos desejos” não é, de fato, uma história duas pessoas distintas, mas sim de duas versões de uma mesma pessoa. É um mergulho interno, um percurso pelas ruas escuras que habitam dentro de nós. A personagem foge de si, olha para trás, para rever o passado, tenta encontrar um caminho de volta — mas não se trata de voltar para outra pessoa, e sim para uma versão de si mesma que se perdeu no tempo.
A casa, nesse contexto, é um símbolo: o lugar do retorno, do acolhimento, daquilo que já foi familiar e seguro. Mas ao atravessá-la, ela encontra não a vida que buscava, e sim a morte de uma parte de si. A versão que esperava pacientemente, que ainda acreditava em cores, flores e simplicidade, não resistiu à espera e se desfez.
Sensacional!!!!!
ResponderExcluirAmeeeei, apesar de ser um pouco "triste" é muito bom,muito bem escrito.