Fonte dos desejos

Cartas para Ana - 4

 SĂŁo Paulo, 2009

Oi, amor.

Demorou, mas vocĂȘ me ouviu.

Tava aqui esse tempo todo — encostada num canto do peito, esperando vocĂȘ me chamar.
Eu nĂŁo sou sĂł lembrança. Sou sopro preso, corpo esquecido, pulso que vocĂȘ engavetou pra continuar.

VocĂȘ lembra? A gente se arrumava como quem ia mudar o mundo.
Banho gelado, som alto, o jeans rasgado de sempre, a regata colada, a jaqueta de couro firme no corpo magrelo. E o cabelo colorido — como quem diz, sem precisar abrir a boca: “eu tĂŽ aqui, inteira.”

E o batom… O vermelho, claro. Sempre vermelho. Sempre passado com precisĂŁo.
Porque mesmo quando tudo desmoronava, a gente se vestia de presença.
Aquele batom era nossa armadura. Nosso grito.

A pista era o Ășnico lugar onde o mundo nĂŁo gritava mais alto que a gente.
A gente ria, dançava, gritava as letras das mĂșsicas com força de oração.
Era tudo tĂŁo... leve. TĂŁo cheio de vazio bom.

Mas Ă s vezes eu me pergunto: quando foi que tudo mudou?

Eu nĂŁo sei.

Foi no dia em que a mĂșsica parou de tocar?
Ou quando vocĂȘ começou a se vestir no escuro, com medo de errar?
Foi quando vocĂȘ parou de dançar e começou a pedir desculpas sĂł por existir?
Quando começou a ouvir mais a voz de alguém do que a sua?
Ou foi quando… vocĂȘ simplesmente cansou?

NĂŁo sei. Eu, daqui de dentro, tambĂ©m nĂŁo consegui entender.
SĂł vi vocĂȘ apagando aos poucos, como quem vai apagando a luz de cada cĂŽmodo antes de sair de casa.

Mas hoje… Hoje vocĂȘ acendeu alguma coisa.

No choro, na lembrança, no silĂȘncio entre as palavras… VocĂȘ me trouxe de volta.
E eu tÎ aqui, de pé.

NĂŁo pra te cobrar. Mas pra te lembrar: eu ainda sou vocĂȘ.

E vocĂȘ ainda pode ser nossa.

Mesmo que nĂŁo queira mais a pista, mesmo que nĂŁo tenha mais coragem de andar sozinha pela cidade Ă s trĂȘs da manhĂŁ, mesmo que a jaqueta de couro tenha ficado apertada… o batom ainda tĂĄ ali.
A mĂșsica tambĂ©m.

Coloca pra tocar. Devagar. Dança sĂł pra vocĂȘ.
Me encontra aos poucos, sem pressa.

Eu te espero. Com os braços abertos.
E o batom impecĂĄvel.



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