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Eu não ando por ruas de verdade.
Faz meses que não saio de casa, mas minha cabeça tem esquinas tortas, becos úmidos, vielas sem saída.
É lá que eu me perco — com passos pesados, tropeçando em pensamentos embolorados, cruzando com versões minhas que não quero mais encontrar.
Essa liberdade que ganhei me pesa como correntes no tornozelo.
Não é fuga, é prisão sem algema. Um arrasto silencioso.
O mundo seguiu. As portas abriram. Os bares estão cheios.
Mas aqui, numa casa que é só minha, eu sigo presa.
Não tem tranca. Não tem carcereiro.
Só eu e meus ruídos internos, dançando em loop.
A cama me engole como se tivesse dentes. A pia me acusa com restos de comida de três dias atrás.
O espelho some — ou sou eu que desapareço?
As paredes sussurram lembranças. O chão geme a cada passo.
Tudo me lembra que eu tô aqui, parada, mesmo quando o tempo corre.
Liberdade virou um quarto abafado, com mofo no teto, vazamento na parede e louça acumulada.
Punk demais pra se encaixar. Frágil demais pra quebrar tudo de novo.
Forte o suficiente pra continuar… respirando.
Eu me tranco, mas não por querer. É que sair exige um corpo que eu não tenho mais.
Exige uma fome de viver que se apagou no meio da rotina.
Acordar, trabalhar, pagar. Fumar, engolir qualquer coisa, dormir sem sono.
Repetir.
Voltar pra onde eu morri um dia, nunca mais.
Lá me disseram que falar alto era feio. Que sentir era exagero. Que liberdade era pecado.
Lá eu aprendi a me esconder.
No quarto. No corpo. Na cabeça.
Agora, sou eu comigo.
Meus fantasmas batem ponto. Minha sombra cresce nas frestas da cortina. A música alta já não anestesia. As telas já não distraem. Nem o sexo me acende.
O mundo tá em tecnicolor, mas eu sou dessaturada.
Às vezes vem uma vontade de quebrar tudo.
De berrar. De me arrancar de mim. De cuspir na cara dessa solidão que me abraça com nojo.
Mas eu não grito.
Porque se eu abrir a boca, acho que não vai sair som.
Ou pior: pode sair tudo de uma vez.
É o som do meu pensamento raspando dentro do crânio.
É a boca costurada por dentro.
É o corpo que se contorce, mas ninguém vê.
É o silêncio que me amarra nas madrugadas.
Mesmo assim, entre o pó acumulado, o medo que dorme ao meu lado, e o abismo que habita meus olhos… tem algo pequeno, quase invisível.
Uma teimosia suja. Um fiapo de fogo. Uma fagulha.
Não por esperança. Mas por raiva.
Por sobrevivência.
Por vingança de tudo que tentaram me apagar.
Tô aqui.
Caída, ferida, exausta.
Mas viva.
E viva é o bastante pra seguir sendo...
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