Fonte dos desejos

Partes que ainda doem


Diante de tudo, ela acende mais um cigarro, o café esfriou.


tirei a blusa.
o espelho mentiu.
de novo.


vocĂȘ parou de dançar?


eu paro tudo.
menos a mĂĄquina de lavar. 

e a movimentação da conta pagando boletos.


que saco... e o vinho?


ficou seco demais.


vocĂȘ ainda escreve?


sĂł listas, e-mails
e recados pro colégio.


vocĂȘ me matou?


nĂŁo.
te escondi atrĂĄs das panelas e planilhas.


eu gritei.


eu ouvi.
mas o Gu tava com febre.


vocĂȘ amou alguĂ©m depois dela?


nĂŁo o suficiente.
pra esquecer. Ou querer.


vocĂȘ lembra do mar?


o barulho sim.
o gosto, nĂŁo.


ainda quer fugir?


sĂł Ă s quintas.
Ă s vezes domingos.


e seu corpo?


tĂĄ aqui.
mas ninguém entra.


nem vocĂȘ?


principalmente eu.


ainda me ama?


muito.
mas nĂŁo sei mais te vestir.


me veste de mĂșsica.
e me deixa sair pela janela.


entĂŁo volta.
mas vem com calma.
o chĂŁo ainda Ă© feito de cacos.

Ela beberica o café gelado. uma lågrima escorre.


eu escrevi uma carta.
vocĂȘ nunca leu.


esqueci como abrir envelopes.
tudo Ă© digital agora.


mas e as cicatrizes?


eu escondo. embaixo de tatuagens velhas.
no riso educado.
na legenda da foto.


vocĂȘ se arrepende?


de nĂŁo ter fugido.
de ter ficado.
de ter deixado morrer o que era sĂł semente.


vocĂȘ ainda sente tesĂŁo?


Ă s vezes.
mas eu engulo.
com o jantar.


e aquela menina dos olhos escuros?
a do primeiro nĂŁo?


ainda sonho com ela.
mas acho que eu nunca a perdoei.
e talvez esteja certa.


quando foi que a gente ficou careta?


quando o medo ficou maior que a vontade.


a gente ainda pode quebrar alguma coisa?


sim.
sĂł nĂŁo sei o que quebrar.


vocĂȘ me deixa bagunçar a cama?


deixo.
mas arruma depois comigo.


promete que nĂŁo vai me trancar de novo?


nĂŁo sei. talvez.
mas me avisa antes de gritar.


entĂŁo escreve de novo.
com as palavras erradas.
com as vĂ­rgulas fora do lugar.
com o peito aberto.


vou tentar.
com mĂșsica.
com medo.


Ela coloca o coturno sobre a calça rasgada que jå não fecha mais.

Ela força... se irrita. tira tudo. acende outro cigarro e senta na cama. os olhos borrados de rímel e lågrima que queima.


eu deixei ele entrar.
e ele entrou com as botas sujas.
cagou no meu corpo,
cuspiu nas minhas vontades.
e eu ainda pedi desculpa.
por ter ficado triste.


por que vocĂȘ nĂŁo correu?


porque eu achei que ninguém mais ia me amar.
porque a abstinĂȘncia era pior que a solidĂŁo.
porque a gente aprende cedo a confundir migalha com banquete.


e eu?
onde vocĂȘ me enfiou?


no fundo de uma gaveta.
com a calcinha de renda e o cigarro apagado.
numa caixa escrita “quando der tempo”.


vocĂȘ me traiu.


sim. desculpa.
mas eu também fui traída.
por promessas.
por filmes romĂąnticos.
por mĂŁes que disseram “seja boazinha”.
por uma vida que nĂŁo quis saber se eu tava pronta.


vocĂȘ desistiu?


por um tempo, sim.
eu me rendi.
Ă  rotina, Ă  exaustĂŁo, ao medo de enlouquecer.
Ă s vozes dizendo “madura”, “correta”, “responsĂĄvel”, “guerreira”

eu fui tudo.
menos eu.


e agora?


agora eu quero quebrar.
quebrar a louça,
o espelho,
a porra da expectativa.


e dançar?


com raiva.
com cicatriz.
com os olhos marejando de prazer.
com o cabelo bagunçado e o som no talo.


vai voltar?


nĂŁo sei.
mas eu quero renascer.
mas dessa vez…
com vocĂȘ do meu lado. se vocĂȘ quiser.


entĂŁo me pega pela mĂŁo.


segura firme.
porque agora a gente vai gritar.
vai sangrar.
vai escrever até doer o pulso.
vai gozar sem pedir licença.
vai amar sem promessa.


vai viver?


vai. 


Ela tenta de novo a calça... que fecha. passa um batom vermelho. o cafĂ© acabou. ela sai e fecha a porta, tranca por fora. 

a louça continua na pia.

 






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