Fonte dos desejos

Legs

Houve um tempo em que ela se sentia indomável.

Andava sem hora, dançava sem medo, falava alto com o coração na boca.
A cidade era um palco e ela, um corpo em movimento constante, feito de urgência, desejo e palavra.

Amanhecia pelas ruas com os pés descalços e a cabeça cheia de ideias.
Escrevia com raiva e ternura, em textos que não pediam permissão — apenas existiam.
Sentia tudo. O tempo todo.
E era essa intensidade que a mantinha viva.

Naquele tempo, ela acreditava na liberdade como um idioma possível.
Acreditava que era possível amar sem moldar, viver sem pedir desculpas, criar sem se conter.
Tinha um nome secreto, que só as madrugadas conheciam.
Era outra versão de si — uma versão que não cabia em rótulos nem em expectativas.

Mas então algo que parecia amor a atravessou.
Veio do mesmo mundo que ela habitava — e, ainda assim, a desfez.
Não foi de uma vez. Foi devagar.
Foi nas pequenas desistências.
Nas culpas que se acumulam como poeira nos cantos.
Nos silêncios onde antes morava a voz.

E quando viu, já não gritava.
Já não dançava.
Já não escrevia como antes.

Pouco tempo depois, a maternidade chegou.
Trazendo amor profundo, sim.
Mas também exigência, vigilância, doação.

E ela, que sempre fora feita de intensidade, foi se tornando contenção.
Foi trocando noites inteiras por manhãs apressadas.
Palavras por listas.
Liberdade por função.

Passaram-se quase treze anos.

Hoje, há dias em que ela se sente tão distante de si que mal reconhece o próprio reflexo.
Como se a mulher de antes tivesse sido apenas um sonho bonito, ousado, que o tempo dissolveu.
Mas às vezes, no intervalo entre uma tarefa e outra, algo pulsa.
Como um eco.
Uma lembrança que ainda arde sob a pele.

Outro dia, uma música antiga tocou.
E, no meio do refrão, a pergunta veio como um sussurro familiar:

“Como chegamos aqui? Eu me conhecia tão bem...”

Foi quando ela percebeu:
não se tratava apenas de saudade.
Era luto.
Luto por si mesma.

Mas também esperança.

Porque se há memória, há caminho.
Se há eco, há origem.

E talvez ela nunca mais seja exatamente a mesma.
Mas pode ser outra — com cicatrizes, com raízes, com escolhas mais conscientes.
Pode resgatar partes que ficaram pelo caminho.
Não pra repetir o passado, mas pra acolher o que dele ainda pulsa.

Ela ainda sabe escrever.
Ainda sabe dançar.
Ainda sabe sentir — mesmo que tenha se esquecido por um tempo.

Talvez seja hora de reaprender o próprio nome.
Não o secreto.
Mas o verdadeiro.
Aquele que abriga todas as versões.

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