Fonte dos desejos

Treze Palmos

Ela se enterrou sozinha. Não por escolha — por exaustão. Por vergonha. Por abandono.

O que mais poderia fazer, quando a dor se tornou constante demais pra ser chamada de dor? Quando viver virou um trabalho silencioso, e sobreviver virou rotina?

Não houve um único dia que marcou o fim. Foi uma série de pequenos assassinatos diários.
Primeiro mataram sua confiança. Depois, o desejo. A vaidade. A coragem. A voz.
Ela sentiu tudo ruir devagar, como um prédio malconstruído que afunda pelas fundações — e ninguém percebe de fora.
Continuava funcionando, respondendo mensagens, indo ao mercado, comparecendo às reuniões, alimentando o filho.
Mas por dentro…
Treze palmos abaixo.

O que antes era corpo se tornou trincheira.
Ela se culpava pelo novo peso, pelas roupas que não fechavam, pelas tatuagens tentando segurar uma pele que ela já não reconhecia.
Aquela pele havia sentido socos.
Havia sido marcada de formas que ninguém via.
Era pele que carregava o cheiro da traição, o gosto do abandono, a vergonha de ter aceitado o que nunca quis.

Antes disso tudo — e parece que foi em outra vida — ela era outra.
Uma mulher elétrica. Cheia de fúria boa.
Que marchava com seu coturno, e ia na noite gelada contra o mundo.
Que passava o batom vermelho não pra provocar, mas pra lembrar: “eu sou minha.”
Que dançava como ameaça.
Que escrevia como quem sangra.

Amava intensamente, mesmo que doesse.
E doeu. Sangrou.
Ela foi partida em dois por alguém que a conhecia por dentro.
Que a viu tentando se recuperar de vícios, de traumas, de uma juventude vivida no limite — e, mesmo assim, a quebrou no ponto mais vulnerável.

Foi ali que ela começou a se apagar.

O que veio depois foi o pesadelo com rosto conhecido.
Alguém que chegou como amigo.
Que ofereceu abrigo.
Que tomou espaço.
E, quando percebeu que ela estava fraca, tomou tudo.

Começou com palavras que pareciam preocupação.
Depois, com sexo sem desejo.
Depois, com controle.
Com silêncios.
Com portas trancadas.
Com tapas.

Ela grávida.
Ela só.
Ela sem voz.

Se perguntavam por que ela não saía.
Mas ninguém pergunta isso quando a prisão é invisivel.
Quando a cela tem trancas nas portas, nas palavras e nos pensamentos. Quando o medo é maior que a vontade de viver.

Treze anos depois, ela ainda escuta as vozes.
Algumas são externas — cobrando, exigindo, invalidando.
Mas as piores vêm de dentro.
Aquela que sussurra que ela deixou isso acontecer.
Que ela traiu a si mesma.
Que ela nunca mais será como antes.

E talvez não seja.

Talvez aquela mulher nunca volte.
Talvez o moicano com as pontas rosas fique só na lembrança.
Talvez o coturno tenha sido mesmo enterrado com ela.

Mas agora ela cava.
Cava como quem quer respirar.
Com as unhas. Com as palavras. Com o choro abafado na madrugada, quando tudo dorme e só a dor acorda com ela.
Cada frase escrita é uma pá.
Cada memória enfrentada é uma rachadura no concreto.
Ela cava mesmo sem saber se vai conseguir sair.
Mesmo sem saber se vai se reconhecer quando chegar à superfície.

O que ela sabe é que algo lá embaixo ainda pulsa.
Não é bonito.
Não é leve.
É brutal.
É cru.
É resistência em estado bruto.

E isso basta.
Por hoje, isso basta.

Porque existe uma mulher debaixo da terra.
Não morta.
Enterrada viva.
Gritando baixo.
Arranhando as paredes.
Esperando — não por resgate, mas por si mesma.

Ela está vindo.

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